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APCC apresenta queixa na Provedoria de Justiça contra norma que suspende rendas mínimas nos centros comerciais

A Associação Portuguesa de Centros Comerciais (APCC) apresentou, dia 16 de setembro, na Provedoria de Justiça uma queixa, com o objetivo de travar o regime especial inscrito na Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que aprovou o Orçamento de Estado Suplementar, o qual isenta os lojistas dos centros do pagamento das rendas mínimas até ao final deste ano.

Em causa está o n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei do Orçamento do Estado para 2020 (LOE 2020), aditado pelo Orçamento Suplementar, que suspende, até 31 de dezembro de 2020, a obrigação de pagamento das rendas mínimas por parte dos lojistas, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, além de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns.

A medida originou severas críticas por parte dos proprietários dos centros comerciais e de outros operadores do setor, motivando a apresentação, a 16 de setembro, de uma queixa da APCC na Provedoria de Justiça, «denunciando a inconstitucionalidade do referido normativo».

Em comunicado, a APCC informa que «apelou à Senhora Provedora de Justiça para que “tome em consideração as preocupações manifestadas, diligenciando juntos dos órgãos estaduais competentes para correção de uma situação que se reputa injusta, pouco clara, e de duvidosa compatibilidade constitucional e, caso assim o considere adequado, possa, em qualquer caso, requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade da norma”».

A associação, presidida por António Sampaio de Mattos, fundamenta o apelo nos pareceres jurídicos elaborados por reputados constitucionalistas, como Jorge Miranda, Rui Medeiros e Jorge Reis Novais, que apontam para a inconstitucionalidade daquela norma.

Segundo o documento apresentado na provedoria, que sintetiza os referidos pareceres, o n.º 5 do artigo 168.º-A da LOE 2020 «conduz a situações de manifesta e profunda injustiça material, que suscitam dúvidas de constitucionalidade assinaláveis por violação, entre o demais, de direitos, liberdades e garantias».  Por outro lado, «reflete a ilegitimidade da intervenção legislativa do Estado no plano de relações jurídico-privadas, comprimindo ilegitimamente direitos, liberdades e garantias e assim conduzindo a uma especial oneração dos proprietários dos centros comerciais na sua relação com os lojistas».

Para o presidente da APCC, os pareceres apresentados indicam que a isenção concedida aos lojistas consubstancia «uma interferência direta do Estado em contratos privados, anulando ou limitando as soluções de consenso a que lojistas e centros comerciais pudessem chegar, e impõe um prejuízo sério e injustificado na esfera patrimonial dos proprietários dos centros comerciais».

O dirigente associativo esclarece que «não se rejeita que aos lojistas afetados pelas medidas legislativas e administrativas de exceção que determinaram o encerramento dos estabelecimentos comerciais ou a suspensão da sua atividade não fosse devida uma ajuda de natureza pública. O que rejeitamos é que essa ajuda seja coercivamente transmitida para os proprietários dos centros comerciais, que em nada contribuíram para a situação e que, de igual forma, foram severamente impactados pela pandemia».

É ainda apontado, com «especial perplexidade», o facto de a norma se aplicar apenas aos contratos de utilização de loja em centros comerciais, excluindo contratos de arrendamento com fins comerciais, como é o caso das lojas de rua.

Com efeito, desde a data da entrada em vigor da LOES, a 25 de julho de 2020, que  os lojistas em centro comercial com contratos de estrutura dual de renda ficaram isentos do pagamento de renda mínima – recaindo sobre os proprietários, o risco do curso pandémico –, sendo que os lojistas sem a componente variável da renda, ficam (apenas) cobertos pela moratória no pagamento das rendas, salvo outro acordo que tenha sido estabelecido, ou venha a ser estabelecido entre as partes”, assinalam os responsáveis da APCC.

No entender da direção da APCC, “importa ainda salientar outra distorção criada por esta Lei discriminatória no que aos proprietários diz respeito”.

Os senhorios com contratos de arrendamento não habitacional, que operam, por exemplo lojas de rua, sem a componente variável da renda, estão, pelos motivos anteriormente expostos, em clara vantagem face aos proprietários dos centros comerciais”, alerta a APCC.

 

APCC rejeita a retroatividade da lei

Outra questão que se tem colocado, nomeadamente por parte dos lojistas, é a possível retroatividade da lei.

De acordo com os constitucionalistas citados pela APCC, «não há dúvidas que a lei entrou em vigor no dia 25 de julho de 2020, sendo manifesta e cristalina a sua aplicação não retroativa (por só abranger rendas futuras) a contratos já celebrados e em execução». De acordo com os autores dos pareceres, não podem existir quaisquer efeitos retroativos da norma, «sendo esta, de resto, a única interpretação compatível com a proibição de retroatividade das normas restritivas de direitos, liberdades e garantias, prevista no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa», refere o documento entregue na Provedoria de Justiça.

Contrariamente, os lojistas defendem a aplicação retroativa da norma em apreço a março deste ano, mês em que a pandemia provocou a paralisação da atividade.

A APCC questiona também o facto de a norma se aplicar exclusivamente aos contratos de lojas de centros comerciais, excluindo os «contratos de arrendamento com fins comerciais (por exemplo as lojas de rua)».

Sampaio de Mattos garante que a APCC e os seus associados «continuam, como sempre estiveram, disponíveis para, em conjunto com os lojistas, encontrar as soluções adequadas a cada momento e à capacidade de cada lojista, tendo em vista a preservação do emprego gerado por este setor e a sua contribuição para a retoma da economia».

Já no início de setembro, a Associação de Marcas de Retalho e Restauração (AMRR), que representa os comerciantes, apresentou um parecer jurídico, da autoria de António Menezes Cordeiro, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que sustenta a tese da retroatividade.

Para o Professor, “a aplicação das rendas variáveis deve aplicar-se desde o início do confinamento”, já que, “ao abrigo deste regime, o valor da renda nos conjuntos comerciais resulta da aplicação de uma percentagem sobre o volume das vendas”.

O parecer garante também que “o princípio constitucional da igualdade sufraga, ainda, esta solução”, concluindo que “dado o encerramento e depois o condicionamento dos espaços comerciais, a repercussão do risco implica a suspensão da ‘parte fixa’, uma vez que a contraprestação (o desfruto do negócio) se impossibilitou temporariamente”.

Já quanto à «’parte variável’: estando indexada aos negócios, subsiste, sendo expectável que venha a melhorar ao ritmo da retoma da economia», de acordo com a interpretação de Menezes Cordeiro, diz a AMRR.

Lembrando que “a decisão de encerramento e, depois, as restrições ainda hoje existentes provocaram uma quebra abrupta e imprevisível nos negócios”, Menezes Cordeiro afirma “que outra interpretação que não a de aplicar desde março este regime resultaria numa lacuna legal” que conduziria a que “no pico da crise e com os centros encerrados, a ‘renda fixa’ seria devida; aquando da recuperação (pós-25 de julho), ela seria dispensada; e isso enquanto os outros setores, com relevo para o arrendamento, beneficiariam de apoio ‘ab initio’ [desde o início]”.

Segundo Miguel Pina Martins, presidente da AMRR, citado no comunicado, “no mesmo sentido deste parecer, e assumindo a mesma interpretação, já houve conjuntos comerciais a emitir notas de crédito”, acrescentando que para a entidade “esta é uma interpretação natural, visto que os prejuízos sentidos pelos lojistas fizeram-se notar desde o período de encerramento obrigatório, e a criação da lei em questão visa apoiar os lojistas precisamente neste período, pelo que não faria sentido que fosse de outra forma”.

As vendas dos lojistas caíram 36,8% em julho, face ao mesmo mês de 2019, um retrocesso inferior ao registado em junho (40%), apesar de ser “um ano desastroso para o setor”, avançou a AMRR a 10 de agosto.

Em julho, o cenário foi ligeiramente menos negativo em todo o país com a quebra de vendas a registar 36,8% face ao mesmo período do ano passado (em junho foi de 40%), apesar de em Lisboa a quebra ter sido superior (-42,8% face ao período homólogo do ano passado) e pior do que o mês de junho (42,5%)”, apontou, em comunicado, a associação.

Seja como for, a AMRR não se surpreendeu com a queixa da APCC, uma vez que esta última já tinha apresentado os pareceres dos constitucionalistas referidos aos deputados e ao Presidente da República.

Aliás, o facto de ter «esperado dois meses para fazer este pedido revela bem que não se trata mais do que uma manobra para tentar condicionar as senhoras e os senhores deputados a não clarificaram que o justo e equilibrado regime das rendas se aplica desde o encerramento das lojas», cita o Eco. E nota ainda que «o apelo de justiça por parte da APCC não deixa suscitar alguma curiosidade, uma vez que os próprios centros comerciais acham justo que os lojistas paguem a totalidade das rendas com as lojas e restaurantes fechados», cita o mesmo jornal.

De acordo com a AMRR, o parecer afirma que “esta solução resulta da origem da Lei, do sistema global do ‘Direito Covid-19’, com relevo para os princípios da eficiência, da preservação do ‘status quo’, da cristalização do risco e da teleologia do diploma, assente nos valores sociais e económicos que justificam a intervenção do Estado em todo este processo”.