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Como reagir ao registo de uma marca comercial, feito única e exclusivamente, com o propósito de prejudicar um terceiro?

Analisamos a este propósito duas decisões judiciais is casos decididos recentemente na jurisprudência nacional e europeia, que deram aos casos submetidos a julgamento, solução coincidente fundada no principio de proibição do “Abuso de Direito”.

I.

Chapéus há muitos!!!

O Caso Português

Em agosto de 2008, um cidadão nacional iniciou a actividade de fabrico e comercialização de chapéus sob designação comercial “A Fábrica dos Chapéus”. Nesse mesmo mês, abriu a sua primeira loja em Lisboa, passando a fazer uso do logótipo a seguir inserto, que aplicou na porta do estabelecimento, cartões comerciais, papel timbrado e outros suportes de publicidade.

Em 10 de fevereiro de 2009, o mesmo empresário viria a registar o domínio “afabricadoschapeus.com” e, em 18 de julho desse mesmo ano, requereu junto do INPI, o registo da marca “A Fábrica dos Chapéus”.

Este pedido viria a ser indeferido, por o INPI entender tratar-se de uma denominação comum insuscetível de ser objeto de um direito privativo.

Posteriormente, o dito empresário viria a contrair matrimónio e, em 2010, a sua enteada passou a participar na gestão do seu negócio, o que se verificou até março de 2017, altura em que o casal se separou.

Em julho desse mesmo ano, a filha da ex-mulher do empresário, apresentou junto do INPI dois pedidos de registo de marcas: um deles para a marca “A Fábrica dos Chapéus” que foi recusado, e um segundo sob a sigla “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau” que viria a ser-lhe concedido.

Não obstante o deferimento do pedido de registo, a marca nunca foi utilizada, como, aliás se veio a provar no decurso do julgamento da causa em tribunal

Posteriormente, a ex-enteada do empresário viria a requerer o registo para duas diferentes marcas; em Julho de 2017 para a marca “Os Chapeleiros de LX” e, agosto de 2018, para a marca “Os Chapeleiros”. Em ambos os casos, os pedidos de registo foram deferidos.

Tal como na situação precedente, as marcas concedidas, não foram utilizadas pela requerente.

Em abril de 2018, o empresário tentou registar dois logótipos: um deles o que usava desde 2008, o outro é o que segue. Ambos os pedidos foram recusados pelo INPI.

Para fundamentar a sua decisão, invocou o INPI no despacho de recusa que “ (…) o registo confere ao seu titular o direito de propriedade e de uso exclusivo da marca para os produtos ou serviços a que a mesma se destina. Visa atribuir ao seu titular o direito de impedir que terceiros usem, sem o seu consentimento e no exercício das respetivas atividades económicas, qualquer sinal igual ou semelhante em produtos ou serviços idênticos ou afins daqueles para os quais a marca foi registada e que, em consequência da semelhança entre os sinais e da afinidade dos produtos ou serviços, possam causar um risco de confusão, ou associação, no espírito do consumidor (artigos 224º e 228º do CPI)”.

Inconformado com esta decisão o empresário viria a recorrer a Tribunal impugnando a decisão do INPI, alegando que a conduta da titular das marcas em oposição, ao registar uma marca sem fazer dela uso e, com o único intuito de prejudicar o comércio do Ex padrasto, não poderia deixar de constituir abuso de direito.

De facto, a prevalência da marca sobre o registo dos logotipos, seria gravemente prejudicial ao empresário, que teria de alterar a imagem dos seus produtos, tabuletas e montras da loja, além de ver afetado o seu negócio, pela perda de valor do nome comercial obtido ao longo de uma década.

O Tribunal da Relação de Lisboa, concedeu razão à argumentação do empresário, reconhecendo que o interesse efectivo da titular da marca não estava na sua utilização da marca, mas antes na obtenção de uma desvantagem para a outra parte, o que, na esteira do ensinamento do Professor Manuel de Andrade deveria ser considerado como uma “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.

Por isso, a Relação de Lisboa, julgou que incorre em abuso de direito aquele que regista uma marca, única e exclusivamente, com o propósito de prejudicar o comércio de outrem.

Neste contexto, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que o empresário poderia continuar a usar tanto o logótipo como a denominação, ainda que não beneficiasse de qualquer proteção no uso que deles fizesse, sendo ainda determinado que a marca e o logótipo registados (de má-fé) pela ex- enteada, deveriam ser cancelados pelo INPI.

 

II.

Sky vs. Sky

O Caso do Reino Unido

Curiosamente, pouco tempo depois de ser conhecida a decisão do Tribunal português, viria a ser publicado o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Quarta Secção), de 29 de janeiro de 2020, (processo C-371/18), no qual, entre outras, abordou precisamente a questão do caracter abusivo do registo de marca, na sequência de uma ação de contrafação instaurada contra as Sociedades Skykick Ltd e Skykick Incv, pelas marcas da União Europeia e marca nacional do Reino Unido Sky plc, Sky International AG e Sky UK Lda.

Na sua fundamentação o TJUE defendeu que de acordo com os artigos 51º, nº 1, alínea b) do Regulamento nº 40/94 e 3º, nº 2, alínea d) da Primeira Diretiva 89/104, a apresentação de um pedido de marca sem que haja a menor intenção de a utilizar para os produtos e para os serviços objeto do registo, constitui um ato de má-fé.

Estas disposições preveem, aliás, que a marca poderá ser declarada nula quando o requerente não tenha agido de boa-fé no momento do depósito do pedido de marca, contudo, não fornecem um conceito objetivo de má-fé.

Foi neste contexto que o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou que, embora em conformidade com o seu sentido habitual na linguagem corrente este conceito pressuponha a existência de um estado de espírito ou intenção desonesta, importa considerar o contexto particular do direito em causa – o da vida comercial. Assim, “cada empresa deve, para captar a clientela através da qualidade dos seus produtos ou dos seus serviços, ser capaz de fazer registar como marcas, sinais que permitam ao consumidor distinguir sem confusão possível esses produtos ou esses serviços do que tenham outra proveniência” (Acórdão de 12 de setembro de 2019, Koton Mağazacilik Testil Sanayi ve Ticaret/EUIPO, C-104/18 P, EU:C:2019:724, nº 45).

Entendeu por isso o TJUE que será aplicável a recusa por má-fé na situação em que resultem indícios objetivos, precisos e concordantes de que o titular de uma marca não apresentou o pedido do registo de uma marca com o objetivo de participar de forma legal no jogo da concorrência, mas antes de prejudicar os interesses de um terceiro.

 

III.

A solução do ordenamento jurídico Português

O atual Código da Propriedade Intelectual, prevê que a má-fé é fundamento de recusa do registo, podendo ser invocada por qualquer interessado para o efeito (artigos 192º, nº 4, alínea g), 231º, nº 6 e 288º, nº 6), bem como de nulidade (artigo 307º, nº 1).

Ademais, segundo o disposto no artigo 325º, nº 1 do referido diploma, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias aquele que, de má-fé, conseguir que lhe seja concedida patente, modelo de utilidade ou registo de desenho e modelo.

Deste modo, este fundamento de recusa cria uma exceção ao regime das marcas livres e não registadas. O diploma opta por conceder ao utilizador de uma marca livre ou não registada um direito de prioridade de seis meses para efetuar o registo. Porém, a proibição do registo de má-fé poderá, na prática, permitir que o titular de uma marca usada não registada possa vencer no confronto com uma marca registada, desde que consiga comprovar que o registo foi feito de má-fé.

Em suma, poderemos concluir que o requisito de boa-fé na aquisição de direitos de propriedade industrial é de extrema importância e poderá constituir fundamento para recusa do registo ou para a declaração de nulidade do mesmo.