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O TJUE anula decisão da Comissão Europeia que tornou obrigatórios os compromissos assumidos por uma empresa para preservar a concorrência nos mercados

 A Paramount Pictures International Ltd e a sua sociedade-mãe, a Viacom Inc. (a seguir, conjuntamente, «Paramount»), celebraram com os principais organismos de radiodifusão de conteúdos pagos da União Europeia, entre os quais figuram a Sky UK Ltd, a Sky plc (a seguir, conjuntamente, «Sky») e a Groupe Canal + SA, contratos de licença sobre conteúdos audiovisuais.

Em 13 de janeiro de 2014, a Comissão Europeia deu início a um inquérito sobre possíveis restrições que prejudicavam a prestação de serviços de televisão paga no âmbito dos contratos de licença em questão, a fim de apreciar a sua compatibilidade com o artigo 101. ° TFUE e com o artigo 53. ° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (a seguir «Acordo EEE»). Este inquérito levou-a, em 23 de julho de 2015, a enviar à Paramount uma comunicação de objeções relativamente a determinadas cláusulas constantes dos contratos de licença que esta tinha celebrado com a Sky. No caso em apreço, trata-se de duas cláusulas conexas, das quais a primeira visava excluir ou limitar a possibilidade de a Sky responder positivamente a pedidos não solicitados provenientes de consumidores residentes no EEE, mas fora do Reino Unido e da Irlanda, com vista ao fornecimento de serviços de distribuição televisiva, enquanto a segunda impunha à Paramount que inserisse uma cláusula nos acordos que celebrasse com os organismos de radiodifusão estabelecidos no EEE, mas fora do Reino Unido, incluindo uma proibição análoga para esses organismos de radiodifusão a respeito de tais pedidos provenientes de consumidores residentes no Reino Unido ou na Irlanda. A este respeito, a Comissão considerou que os contratos, que conduziam, através dessas cláusulas, a uma exclusividade territorial absoluta, eram suscetíveis de constituir uma restrição da concorrência «por objetivo» na aceção do artigo 101. ° TFUE e do artigo 53. ° do Acordo EEE, na medida em que restabeleciam a compartimentação de mercados nacionais e eram contrários ao objetivo do Tratado de criar um mercado único. Por carta de 4 de dezembro de 2015, a Comissão comunicou à Groupe Canal +, na sua qualidade de terceiro interessado, esta apreciação, bem como uma conclusão preliminar.

Por seu lado, a Paramount propôs compromissos a fim de responder às objeções expostas pela Comissão. A este respeito, declarou-se pronta, nomeadamente, a deixar de respeitar e a não atuar a fim de fazer respeitar as cláusulas que conduziam a uma proteção territorial absoluta dos organismos de radiodifusão, constantes dos contratos de licença celebrados entre a Paramount e estes organismos.

Após ter recolhido observações de outros terceiros interessados, entre os quais a Groupe Canal +, a Comissão, por Decisão de 26 de julho de 2016 [1] (a seguir «decisão controvertida»), aceitou e tornou obrigatórios os compromissos assim assumidos, como previsto no artigo 9.° do Regulamento n.º 1/2003 [2]. A Paramount notificou então a Groupe Canal + do teor dos compromissos tornados obrigatórios e das respetivas implicações, concretamente, da sua intenção de deixar de zelar pelo respeito da exclusividade territorial absoluta que lhe tinha sido concedida no mercado francês. Considerando que tais compromissos, assumidos no âmbito de um processo que apenas envolvia a Comissão e a Paramount, não lhe podiam ser oponíveis, a Groupe Canal + intentou no Tribunal Geral um recurso destinado à anulação da decisão controvertida, ao qual o Tribunal Geral negou provimento, por Acórdão de 12 de dezembro de 2018 [3]. Todavia, no seu Acórdão de 9 de dezembro de 2020, o Tribunal de Justiça declara que a apreciação efetuada pelo Tribunal Geral sobre o caráter proporcionado da infração dos interesses de terceiros, resultante da decisão controvertida, enferma de erros de direito. Consequentemente, ao julgar procedentes os pedidos do recurso interposto pela Groupe Canal +, anula o acórdão recorrido e, pronunciando-se definitivamente sobre o litígio, a decisão controvertida. Neste contexto, o Tribunal de Justiça fornece novas clarificações sobre a articulação das respetivas prerrogativas da Comissão e dos órgãos jurisdicionais nacionais na execução das regras de concorrência da União.

 

  • Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça considera que foi acertadamente que o Tribunal Geral julgou improcedente o fundamento relativo a um desvio de poder, que visava, em substância, demonstrar que a Comissão, ao adotar a decisão controvertida, eludiu o processo legislativo relativo à questão do bloqueio geográfico. A este respeito, o Tribunal de Justiça aprova, nomeadamente, o facto de Tribunal Geral ter salientado que, enquanto o processo legislativo relativo à questão do bloqueio geográfico não tiver conduzido à adoção de um texto legislativo, esse processo não prejudica as competências de que a Comissão está investida ao abrigo do artigo 101. ° TFUE e do Regulamento n.º 1/2003. Ora, no caso em apreço, é ponto assente que a decisão controvertida foi adotada ao abrigo dessas competências, antes da conclusão do processo legislativo em questão.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça considera que foi igualmente por motivos suficientes e isentos de erro de direito que o Tribunal Geral rejeitou os argumentos da Groupe Canal + destinados a demonstrar a licitude das cláusulas pertinentes à luz do artigo 101. °, n.º 1, TFUE e, portanto, a falta de fundamento das objeções na origem da decisão controvertida. Com efeito, na medida em que os contratos de licença em questão incluíam cláusulas que visavam eliminar a prestação transfronteiriça dos serviços de radiodifusão do conteúdo audiovisual em causa e conferiam, com essa finalidade, aos organismos de radiodifusão uma proteção territorial absoluta garantida por obrigações recíprocas, o Tribunal Geral podia validamente declarar que essas cláusulas são, sem prejuízo de uma eventual decisão que declare definitivamente a existência ou a inexistência de uma infração ao artigo 101.°, n.º 1, TFUE na sequência de um exame aprofundado, suscetível de suscitar, à Comissão, objeções em matéria de concorrência. Nesta mesma perspetiva, o Tribunal de Justiça sublinha o caráter preliminar adequado à apreciação da natureza anti concorrencial do comportamento em causa no âmbito de uma decisão adotada nos termos do artigo 9. ° do Regulamento n.º 1/2003. Consequentemente, foi também acertadamente que o Tribunal Geral considerou que o artigo 101. °, n.º 3, TFUE só é aplicável se tiver sido previamente declarada uma infração ao artigo 101. °, n.º 1, TFUE, para daí deduzir que não lhe competia, no âmbito da fiscalização da legalidade dessa decisão, pronunciar-se sobre as alegações relativas às condições de aplicação do artigo 101. °, n.º 3, TFUE.

Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça aprova o facto de o Tribunal Geral ter considerado que as cláusulas pertinentes podiam validamente suscitar à Comissão objeções em matéria de concorrência relativamente a todo o EEE, sem estar esta sujeita à obrigação de analisar um por um os mercados nacionais em causa. Com efeito, na medida em que as cláusulas pertinentes visavam compartimentar os mercados nacionais, o Tribunal Geral recordou, com razão, que tais acordos poderiam ser suscetíveis de pôr em perigo o bom funcionamento do mercado único, contrariando assim um dos principais objetivos da União, independentemente da situação prevalecente nos mercados nacionais.

Em quarto e último lugar, o Tribunal de Justiça examina a alegação relativa a um erro de direito supostamente cometido pelo Tribunal Geral, em especial à luz do princípio da proporcionalidade, na sua apreciação da incidência da decisão controvertida sobre os direitos contratuais de terceiros, como a Groupe Canal +. O Tribunal de Justiça recorda, antes de mais, que no âmbito do artigo 9. ° do Regulamento n.º 1/2003, a Comissão é chamada a verificar os compromissos assumidos não só na perspetiva da respetiva adequação para responder às suas objeções em matéria de concorrência mas também à luz da sua incidência relativamente aos interesses de terceiros, de maneira que os direitos destes últimos não sejam esvaziados do seu conteúdo. Ora, como o próprio Tribunal Geral observou, o facto de a Comissão tornar obrigatório o compromisso de um operador que consiste em não aplicar determinadas cláusulas contratuais face ao seu cocontratante, como o Groupe Canal +, que apenas tinha a qualidade de terceiro interessado, quando esse cocontratante não o consentiu, constitui uma ingerência na liberdade contratual do referido cocontratante que vai além do disposto no artigo 9. ° do Regulamento n.º 1/2003.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça considera que o Tribunal Geral não podia remeter esses cocontratantes para os órgãos jurisdicionais nacionais para fazerem respeitar os seus direitos contratuais sem violar as disposições do artigo 16. ° do Regulamento n.º 1/2003 que proíbem esses órgãos jurisdicionais de adotarem decisões que sejam contrárias a uma decisão anterior da Comissão na matéria. Com efeito, uma decisão de um órgão jurisdicional nacional que obrigue um operador a não cumprir os seus compromissos tornados obrigatórios por decisão da Comissão iria manifestamente contra esta última decisão. Além disso, uma vez que o artigo 16.°, n.º 1, segundo período, do Regulamento n.º 1/2003 impõe aos órgãos jurisdicionais nacionais que evitem tomar decisões que entrem em conflito com uma decisão prevista pela Comissão para efeitos da aplicação, nomeadamente, do artigo 101.° TFUE, o Tribunal Geral cometeu igualmente um erro de direito ao considerar que um órgão jurisdicional nacional poderia declarar as cláusulas pertinentes conformes com o artigo 101.° TFUE, mesmo que a Comissão pudesse ainda, nos termos do artigo 9.°, n.º 2, do Regulamento n.º 1/2003, reabrir o processo e, como tinha inicialmente previsto, adotar uma decisão incluindo uma declaração formal de infração.

Consequentemente, o Tribunal de Justiça conclui que o acórdão recorrido enferma de um erro de direito quanto à apreciação do caráter proporcionado da decisão controvertida no que respeita à violação dos interesses de terceiros, pelo que deve ser anulado.

Considerando que o litígio está em condições de ser julgado, o Tribunal de Justiça examina, por último, o fundamento de anulação relativo a uma violação do princípio da proporcionalidade. Extraindo as consequências dos fundamentos que justificam a anulação do acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça salienta o caráter essencial, na economia dos contratos de licença em questão, das obrigações destinadas a assegurar a exclusividade territorial concedida aos organismos de radiodifusão, que são afetadas pelos compromissos tornados obrigatórios pela decisão controvertida. Ora, o Tribunal de Justiça conclui que, ao adotar a decisão controvertida, a Comissão esvaziou de conteúdo os direitos contratuais de terceiros, incluindo os da Groupe Canal +, face à Paramount, e violou assim o princípio da proporcionalidade, pelo que há que anular a decisão controvertida.